terça-feira, 13 de maio de 2008

Minha Infância

(Período compreendido de 2 a 12 anos de vida)

Quando me entendi como gente eu tinha dois anos de vida. Lembro muito bem quando cheguei a Juazeiro, em companhia dos meus pais. A casa em que adentramos para morar fazia parte de um conjunto de dez habitações ligadas em meia-parede uma à outra. Refiro-me à Rua Tiradentes, no bairro Santo Antônio. Senti que aquela rua me era ideal, porque tinha muita areia para a gente brincar. A rua não tinha calçamento nem asfalto, o que prevalecia era a areia, onde ficávamos à vontade, se envolvendo com a terra fria. Como não havia esgoto a céu aberto, era afastada a possibilidade de contaminação da terra onde brincávamos.

Antes de meus pais virem a Juazeiro, morávamos na cidade ribeirinha de Casa Nova, onde fui parido por minha mãe. Chegamos a Juazeiro pelo rio São Francisco, a bordo de um vapor que singrava as águas do “Velho Chico” partindo da cidade mineira de Pirapora. Essa possante embarcação saia de Pirapora, descendo o rio de “barbas brancas”, fazendo paradas em todos os portos, onde havia uma povoação, pegando e deixando passageiros e mercadorias.

Onde hoje é a barragem de Sobradinho existia uma grande corredeira com seis quilômetros de extensão, que tinha a denominação de Cachoeira do Sobrado. Essa corredeira era muito acidentada, cheia de pedras enormes, e o vapor tinha dificuldade para navegar no referido trecho, isto porque, era forte a correnteza das águas que fazia muito barulho. Eu me encantei com as enormes pedras através das quais, as águas corriam velozmente; então, aproximei-me da borda do navio, onde eu tentava tocar os lajedos por onde a embarcação passava roçando. Nisso, minha mãe percebeu que eu estava correndo o risco de cair nas águas por causa do balanço do navio, e, aos gritos, colheu-me em seus braços, passando a ter um maior cuidado, temendo que eu voltasse a fazer uma nova tentativa de tocar as pedras por onde a embarcação passava com dificuldade.

Quando chegamos a Juazeiro, fiquei abismado com tanta embarcação no porto, como também, com tanta gente vendendo e comprando pães, bolos, cocadas, beijus, tapioca, rapadura, peixe seco, carne de jacaré etc. Essa feira era realizada no porto toda vez que chegava uma embarcação. A população corria para o porto, atraída pelo possante apito do vapor, para ver a embarcação chegar. A chegada de um navio da FRANAVE era motivo de festa, não somente em Juazeiro, como em todas as cidades ribeirinhas ao longo do rio por onde o barco passava cheio de turistas. A chegada dos meus pais a Juazeiro foi por volta de 1951, quando a Ponte Presidente Dutra estava sendo construída.

Filho de Remeiro

Meu pai era remeiro do São Francisco. Ele era contratado pelos donos de barcas movidas à vara, as quais transportavam mercadorias de Juazeiro para a cidade mineira de Januária e vice-versa. Cada embarcação abrigava até 15 remeiros, e transportava até 30 toneladas de mercadorias. As barcas subiam o rio com produtos manufaturados, como querosene, café, açúcar, sal, farinha de trigo, bolachas etc., e desciam transportando cana-de-açúcar, carne de sol, peixes secos, carne de jacaré, frutas e grãos. Essas barcas eram movidas a custo de varas sobre o peito dos remeiros. Ao final de um dia de labuta, os remeiros encerravam suas atividades com o peito dilacerado, sangrando, por conta da ponta da vara que era usada para impulsionar a embarcação. O ferimento do peito era tratado com toucinho quente: o remeiro deitava com as costas sobre a areia alva da margem do rio, e o dono da barca esquentava o toucinho de porco sobre brasas; quando a gordura estava pingando sobre as brasas, era o momento de aplicar sobre o peito dilacerado do remeiro, que soltava um grito horrendo, de dor, que era ouvido na outra margem do rio. Mas, no dia seguinte, ele teria que executar o mesmo trabalho, começando por volta de cinco horas da manhã. Ao voltar às atividades de remeiro, logo cedo, quando a vara era forçada contra o fundo do rio, para impulsionar a embarcação, a ferida reabria, e um filete de sangue descia pela vara desde o peito do remeiro até às águas do caudal. Ao anoitecer, depois de um mergulho nas águas do “Chicão”, o remeiro era submetido ao mesmo tratamento do toucinho quente sobre o ferimento do peito. Essa era a vida dos remeiros do São Francisco, antes de o progresso chegar à região do Grande Vale.

Mamando nas Cabras

Quando faltavam mercadorias, os remeiros “tocavam” roça. Meu pai, por exemplo, tinha uma área agricultável no povoado do Rodeadouro, onde ele tinha um criatório de caprinos. Vez por outra meus pais nos conduziam ao referido povoado, onde passávamos semanas e até meses, cuidando do criatório. Eu aproveitava para mamar nas tetas das cabras. Eu me infiltrava entre os cabritinhos e, engatinhando, eu berrava – “bééé!!” - imitando os filhotes das cabras, as quais permitiam que eu entrasse debaixo da teta e mamasse até me fartar.

Talvez pelo fato de até hoje gostar de leite de cabra, meus ossos e pulmões são fortes. Enquanto o leite de vaca causa alergias em geral, especialmente às de origem respiratórias, como asma, rinite, sinusite, bronquite asmática etc., o leite de cabra combate e previne qualquer tipo de alergia. Toda criança criada tomando leite de cabra tem uma constituição forte organicamente falando. O leite de cabra ou de jumenta preta é o melhor remédio para os casos de alergia respiratória, por isso que até hoje eu “mamo em cabras” quando tenho oportunidade de adquirir o leite. Se você consome leite de origem animal, indiretamente está mamando pela prole, ou seja, tomando o lugar do bezerro e do cabrito.

O leite de vaca é rico em proteínas, gorduras e cálcio, mas o leite de cabra é mais saudável e tem três vezes mais cálcio que o leite de gado. A ciência médica descobriu que o leite de vaca gera colesterol, o inimigo principal da nossa saúde. Até aos 11 anos de vida, o organismo de crianças e mulheres têm o poder de absorver os depósitos de gordura nas artérias, por causa dos hormônios que elas possuem. As mulheres, por sua vez, devem continuar consumindo leite até à velhice, para prevenir a osteoporose, mas que seja leite de cabra, porque o de gado faz perder o cálcio pela urina, depois da idade de 11 anos de idade. Isto, porque, a partir dessa idade, o nosso organismo perde o poder de proteção contra as gorduras oriundas de determinados alimentos, especialmente do leite de vaca; então, o excesso das gorduras é depositado nas paredes das artérias, gerando o colesterol e a arteriosclerose. Portanto, mantenha uma alimentação pobre em gorduras, pois essa é a chave do nosso bem-estar físico e mental.

Acidentes na Infância

Lembro-me que certa feita, no Rodeadouro, meu pai estava fabricando sabão caseiro. Sendo eu muito “traquino”, fui “mexer” uma porção quente de soda cáustica e, acidentalmente, a solução caiu sobre a minha barriga, comendo parte do meu abdome; os intestinos chegaram a aparecer. Pela misericórdia de Deus, sobrevivi. Em outra ocasião, em fins de 1957, quando eu estava um pouco crescido, beirando os nove anos de idade, fui visitar o meu avô Januário, pai do meu pai, em Casa Nova, minha terra natal, onde ele tinha uma grande roça na ilha. Subi numa árvore para tirar uma fruta, não me lembro que árvore era. Só sei que caí da árvore, de ponta-cabeça, sobre um toco de pau, vindo a perder os sentidos; também, ainda não foi dessa vez que deveria morrer. Lascas de pau adentraram o alto da minha cabeça, o que causou infecção. Durante muito tempo, até a idade adulta, eu sentia fortes dores de cabeça, da qual saía muito pus pelo ferimento. Minha mãe sempre me conduzia aos médicos, que apenas receitavam antibióticos e curativos, mas nunca retiraram as lascas de pau que podiam ser sentidas com o toque do dedo.

Inúmeras vezes eu perdi os sentidos dentro do banheiro enquanto me banhava; uma conseqüência natural da queda de ponta-cabeça sobre o toco. Quando tomava antibiótico, o ferimento da cabeça se fechava, mas os dentes enfraqueciam e apodreciam na boca. Por conta das fortes dores de cabeça que eram freqüentes, no momento dos banhos diários, às vezes que eu colocava a cabeça sob o chuveiro, me sentia aliviado; mas acontecia de vir a desmaiar. Fiquei livre do problema somente em

1990, com a aplicação de argila sobre a cabeça. A mistura de argila e cebola ralada com tomate e repolho puxou toda a substância mórbida que estava em minha cabeça – sangue pisado com pus e lascas de pau. Nessa época, eu cursava Medicina Natural, em São Paulo. Foi pela Medicina Natural que obtive melhor qualidade de vida e aprendi como prevenir as enfermidades e me libertar das dores e da infecção do couro cabeludo, depois de 33 anos de sofrimento.

Voltando ao acidente, na mesma semana que eu caí de ponta-cabeça da árvore, em 1957; inventei de cortar um feixe de capim com o facão do meu avô Januário. Resultado, “meti” o facão na canela; foi muito sangue derramado que eu fiquei assombrado. Agora, eram dois ferimentos, um no alto da cabeça, e outro na canela da perna esquerda. Os ferimentos foram tratados com sal e pó de café. Senti muita febre, e meus avós me conduziram a uma rezadeira que, mediante rezas e benzeduras, passava sobre os ferimentos e todo o meu corpo ramos de arruda, enquanto pitava um cachimbo com fumo bruto, cuja fumaça me deixava incomodado.

Pescaria Cômica

Na semana seguinte, ainda na cidade de Casa Nova, aconteceu algo engraçado: o meu avô convidou-me para uma pescaria. Ele jogaria a tarrafa sobre as águas, e eu vogaria a canoa com um remo. Só que eu não tinha experiência de remo. Quando ele lançou a tarrafa, sem querer, balancei a canoa, fazendo o vovô perder o equilíbrio. E, num abrir e fechar de olhos, ele caiu no leito do rio com tarrafa e tudo, sumindo nas águas. Como eu não tinha maldade, desatei a sorrir com gargalhadas sem parar. Meu avô entrou na canoa e, indignado, só deu um puxãozinho de orelha em mim, mas continuei me divertido com a cena que eu teria presenciado.

Terminada a pescaria, rumamos para a casa de vovô. Chegando próximo de sua casa, eu corri na frente para contar aos meus tios e a minha avó o que teria acontecido. E todos se riram do meu avô que não ficou em nada satisfeito. Ele, com voz trovejosa, dizia assim: “Esse moleque ma derruba da canoa, e depois fica “caçoando” de mim. Quando eu for a Juazeiro vou contar pro Roque, para ele lhe castigar”. Mesmo sabendo que eu seria castigado pelo meu pai, mas não havia meio de me controlar. Quando eu olhava para meu avô, me lembrava da pescaria e dava umas boas gargalhadas sem parar. Nos primeiros dias ele ficava furioso; mas, com o tempo, ele foi aceitando, e terminou por gargalhar comigo, quando eu dizia: “Então, vovô... a canoa em balançou, e o vovô, tibungo na água”!

Guia de Cego

Quando vovô Januário me trouxe de volta a Juazeiro, ele contou para o meu pai as “traquinagens” que eu teria feito em Casa Nova. Naquele momento meu pai sentenciou: “A partir de hoje você vai trabalhar, para deixar de ser traquino. Essas coisas são frutos de mente desocupada”. Então ele providenciou o meu primeiro emprego, antes de eu completar nove anos de idade. Nesse meu primeiro emprego, eu ganhava uns tostões para guiar, pelas ruas de Juazeiro, uma ceguinha conhecida como “dona Blandina”. Eu a guiava, e ela esmolava; dizia assim: “Uma esmola pra ceguinha Blandina”!!

Eu conhecia, em Juazeiro, um senhor que todos o tratavam como “Seu Antônio do Cachorro Quente”. Eu conduzia todos os dias dona Blandina, até a banca de cachorro quente do Sr. Antônio. Meu interesse de levar a ceguinha à banca do Sr. Antônio era para eu comer o pão recheado de carne moída com suco de essência de frutas. Na época, para mim era uma delícia, e a ceguinha também gostava. Além do cachorro quente, eu “pegava” marmita no Hospital Regional, todo meio-dia, para a ceguinha, que dividia a comida comigo. Eu gostava da comida do Hospital Regional de Juazeiro, porque tinha muita carne de charque; era uma comida muita gordurosa, o meu prato predileto, nessa época. Eu apreciava comer carne gorda ou tutano de boi com farinha de mandioca, feijão e rapadura. Minha mãe denominava meu prato de “angu”. (Este assunto continua no capítulo: Minha Adolescência).

Mergulho no Cascalho

Certa feita eu subi em uma pilastra de uma casa em construção, na tentativa de alcançar o topo. A pilastra era de tijolos, e veio a cair; meu pé direito recebeu todo o impacto, e durante várias semanas padeci com o pé inchado, sem poder andar. Era muita dor que eu sentia, e não conseguia dormir por algumas noites! Fiquei curado com um “tratamento da chaleira de água fervente”, sobre a qual minha mãe colocava uma toalha na forma de rodilha e, sobre esta, apoiava o meu pé doente, o que contribuía para aliviar as dores.

Outra ocasião, na idade de 10 anos, eu fui dar um mergulho no rio São Francisco, no porto onde atualmente existe o monumento “M” do então prefeito Misael, em frente à Rádio Juazeiro. Eu não conhecia bem aquele trecho, pois esta era a primeira vez a mergulhar neste local. Sem que antes fizesse um reconhecimento do trecho, fiz a carreira para mergulhar de ponta-cabeça, achando que era fundo o local, e “meti” a cara no cascalho do fundo do rio provocando ferimentos em todo o rosto. Sai das águas aos gritos de dor, com a cara sangrando muito. Foi aquele “Deus me acuda”!

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